27 de janeiro de 2023
Dra. Giseli Ito Gomes | OAB/PR 40.356
A reprodução humana assistida (RHA) é marcada por avanços significativos, transformando-a num dos temas mais inovador, e, ao mesmo tempo, controverso da medicina moderna.
O Mestre Osvaldo Simonelli[1] a define como uma “possibilidade de concepção laboratorial alternativa a pessoas com problemas de infertilidade”, podendo ocorrer de duas formas: homóloga e heteróloga. Na reprodução assistida homóloga, a fertilização é realizada com material biológico dos próprios pacientes, enquanto que, na heteróloga, se utiliza material biológico de terceiros.
A reprodução humana assistida envolve uma série de procedimentos delicados que envolvem riscos e dilemas significativos, como a troca de embriões ou material genético, que pode resultar em consequências irreparáveis para os pacientes e suas famílias. Há ainda a adoção e o descarte de embriões, que geram debates éticos e religiosos profundos sobre o início da vida e o direito à procriação. A cessão de útero, conhecida como “barriga de aluguel”, levanta questões jurídicas e éticas sobre a maternidade e os direitos das partes envolvidas. As técnicas de seleção de sexo do embrião, proibidas no Brasil, provocam discussões sobre eugenia e discriminação. Além disso, a redução embrionária, um procedimento para diminuir o número de embriões implantados em casos de gravidez múltipla, envolve dilemas éticos e religiosos, e, finalmente, a reprodução post mortem, em que o material genético de um falecido é utilizado para conceber, levanta questões legais complexas sobre herança, consentimento e direitos dos filhos.[2]
Estes são apenas alguns dos conflitos inerentes à reprodução medicamente assistida, os quais podem ser agravados pela ausência de um atendimento humanizado e verdadeiramente esclarecedor acerca de todas as fases do procedimento, intensificando o sofrimento e abalos psicológicos aos pacientes.
Não se pretende esgotar a amplitude e a profundidade do tema neste artigo, até porque seria impossível, ante os aspectos multifacetados da reprodução assistida. No entanto, é justamente em razão dessa complexidade e dos potenciais efeitos catastróficos que podem resultar de falhas no procedimento que o Compliance assume um papel crucial, proporcionando diretrizes e controles rigorosos, especialmente quando inexiste legislação específica para nortear a matéria.
Neste contexto, um programa de Compliance personalizado é capaz de não apenas proteger os direitos dos pacientes e garantir a segurança dos procedimentos, mas também de assegurar que as decisões clínicas sejam tomadas de maneira informada e segura, minimizando os riscos, preservando a integridade e a transparência da prática médica.
O dever informacional imposto legal e deontologicamente aos médicos é cumprido quando há uma escolha livre e esclarecida do paciente, sendo tal prática essencial, especialmente em procedimentos de alta complexidade como a reprodução humana assistida. Um programa eficaz de Compliance, com estabelecimento de políticas e protocolos claros de comunicação que assegurem a explicação detalhada de todos os aspectos e fases do procedimento, atenderia o disposto na Resolução CFM nº 2.320/2022:
Os treinamentos para médicos e equipe assistencial assegurariam a transparência necessária, permitindo que os pacientes tomassem decisões livre e esclarecida sobre seu tratamento.
Outro ponto relevante é o tratamento seguro e ético dos dados sensíveis dos pacientes. Neste particular, o Compliance atuaria na implementação de controles de acesso rigorosos, garantindo a privacidade e segurança dos dados em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
O Compliance também tem um importante papel na prevenção de falhas operacionais, com o desenvolvimento e implementação de políticas, protocolos e procedimentos rígidos para assegurar que todas as etapas, desde a coleta de óvulos e espermatozoides até transferência dos embriões sejam realizadas de acordo com os mais altos padrões de segurança. Isso inclui a implementação de protocolos rigorosos para a identificação, manuseio e rastreabilidade de material genético, minimizando os riscos de trocas acidentais de embriões – um dos erros mais devastadores que pode ocorrer na reprodução medicamente assistida.
Assegurar a padronização de processos, sistemas de verificação dupla e a implementação de sistemas eficazes de identificação e rastreamento garantem a consistência e minimizam os erros.
A realização de monitoramento periódico para assegurar a aderência aos protocolos estabelecidos, identificando e corrigindo desvios proativamente é fundamental em um serviço de reprodução humana.
Um sistema de Compliance bem estruturado deve incluir a realização periódica de auditorias internas e externas, focadas na verificação dos processos de manuseio, armazenamento e documentação do material genético.
O Compliance deve assegurar que as recomendações de auditorias internas e externas sejam implementadas de forma oportuna, promovendo a conformidade regulatória e a melhoria da qualidade dos serviços.
A criação de mecanismos eficientes para a gestão de incidentes e a coleta de feedback dos pacientes e equipe sobre a experiência e percepção da segurança do complexo processo de reprodução humana assistida é outro pilar fundamental do Compliance, permitindo melhorias contínuas no serviço prestado.
Contudo, quando erros ocorrem, uma gestão de incidentes rápida e transparente é essencial. O Compliance assegura que existam procedimentos estabelecidos para a investigação imediata de quaisquer falhas, bem como para a comunicação com os pacientes afetados, oferecendo-lhes o suporte necessário e delineando as etapas subsequentes para a resolução do problema, além de implementar medidas corretivas para evitar a repetição de tais erros.
Ao integrar práticas de rastreabilidade, auditorias regulares, treinamento da equipe, transparência e gestão eficaz de incidentes, o Compliance oferece uma estrutura sólida para a entrega de serviços de reprodução humana assistida seguros, éticos e centrados no paciente.
Além de mapear e mitigar riscos, o profissional de Compliance é um importante aliado para o desenvolvimento de uma jornada focada na experiência dos pacientes, proporcionando acolhimento, integridade e humanização nos cuidados da saúde reprodutiva.
A ausência de suporte psicológico especializado durante o processo de reprodução assistida pode exacerbar o sofrimento emocional dos pacientes, especialmente em situações adversas. O procedimento de reprodução humana assistida, por sua natureza, carrega consigo um peso emocional significativo, envolvendo não apenas as esperanças e expectativas dos pacientes, mas também os medos e ansiedades inerentes a procedimentos complexos e, por vezes, incertos.
A integração do suporte psicológico através de um programa de Compliance eficaz representa uma abordagem holística para melhorar a experiência dos pacientes em Instituição de Saúde de reprodução humana assistida.
A atuação do Compliance reforça a humanização do atendimento em reprodução humana assistida ao alinhar os valores da Clínica e/ou da Instituição de Saúde com a criação de políticas, protocolos e treinamentos que promovam um cuidado centrado no paciente, especialmente na mulher, que vivencia a maior parte dos procedimentos e enfrenta desafios físicos e emocionais significativos ao longo do processo.
A elaboração e implementação de políticas de atendimento que estabeleçam expectativas claras para a conduta profissional e a interação entre equipe e paciente são essenciais para assegurar um ambiente de atendimento respeitoso, empático e alinhado aos princípios éticos dos médicos e Instituição de Saúde.
O ambiente físico da Clínica e/ou Instituição de Saúde também é um fator importante na experiência da paciente. Estratégias de Compliance poderiam incluir avaliações regulares do ambiente clínico, visando torná-lo mais acolhedor e menos intimidador para as pacientes, através de ajustes na decoração, iluminação e conforto geral.
Além das considerações técnicas e legais, o Compliance influencia positivamente a cultura organizacional das Instituições de Saúde, promovendo valores éticos e o compromisso com a excelência assegurando que os procedimentos de reprodução humana assistida sejam realizados segundo os mais altos padrões de qualidade e segurança
Conclui-se, portanto, que a implementação de um Programa de Compliance eficaz nos serviços de reprodução assistida é essencial para promover uma assistência de elevada qualidade, focada na segurança, transparência, integridade e acolhimento ao paciente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARLINI, Angélica. et al. Compliance na Área da Saúde. 1ª ed Editora Foco, 2020.
CONSELHO FEERAL DE MEDICINA – CFM. Resolução nº 2.320/2022. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2022/2320_2022.pdf. Acesso em: 24/01/2024
CORRÊA, M. C. D.; LOYOLA, M. A. Tecnologias de reprodução assistida no Brasil: opções para ampliar o acesso. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 209-234. 1999. Dispoível em: http://www.scielo.br/pdf/physis/v25n3/0103-7331-physis-25-03-00753.pdf. Acesso em: 15/02/2024
LEITE, Tatiana Henriques. Análise crítica sobre a evolução das normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida no Brasil. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232018243.30522016. Acesso em: 26/08/2024.
LIMA, A.J.V. Programa de Integridade e Lei 12.846/13. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.
MARCIANO, R.P., Amaral WN. Aspectos emocionais em reprodução humana assistida: uma revisão integrativa da literatura. Femina. 2021; 49(6):379-84
SIMONELLI, Osvaldo. Direito Médico. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. P.257-268.
YOSHIKAWA, L. H. Implantação e aplicabilidade da LGPD para clínicas e laboratórios da área de reprodução humana assistida. Revista Evolution , Brazil : revista Evolution, Mensal. Disponível em: https://revistaevolution.com.br/editoriais/implantacao-e-aplicabilidade-da-lgpd-para-clinicas-e-laboratorios-da-area-de-reproducao-humana-assistida/. Acesso em: 29 fev. 2024.
[1] SIMONELLI, Osvaldo. Direito Médico. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. P.257.
[2] LEITE, Tatiana Henriques. Análise crítica sobre a evolução das normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida no Brasil. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232018243.30522016. Acesso em: 26/08/2024.